tag:blogger.com,1999:blog-79139456568395902642023-11-15T08:51:01.247-08:00colho curaUnknownnoreply@blogger.comBlogger1125tag:blogger.com,1999:blog-7913945656839590264.post-56438821571647049382010-05-28T07:00:00.000-07:002010-11-04T12:02:06.873-07:00COLHO CURA<p></p><p align="center"><span style="color:#ffffff;">.</span></p><p align="center"><iframe allowfullscreen='allowfullscreen' webkitallowfullscreen='webkitallowfullscreen' mozallowfullscreen='mozallowfullscreen' width='320' height='266' src='https://www.blogger.com/video.g?token=AD6v5dy1ToAGDiOexx8VGWk0PxbOcxrn-e8k7gw58OKqwubgdlh_G-8r1pyxQU6hdJopDWekEddYd91tKe65bGyOaA' class='b-hbp-video b-uploaded' frameborder='0'></iframe></p><p align="center"></p><p align="center"><br /><br /><span style="font-family:trebuchet ms;"><span style="font-size:180%;"><strong>colho cura (sertão do reino)<br /></strong></span>(sérgio souto / joãozinho gomes / marcos quinan)<br /></p></span><p><span style="font-family:trebuchet ms;"></span></p><span style="font-family:trebuchet ms;"><p align="center"><br />1 - colho cura </p><p align="center"><br />2 - iên e zumunducu / cego bocovó </p><p align="center"><br />3 - nhanubuí </p><p align="center"><br />4 - vicença e marteniano / joão curto </p><p align="center"><br />5 - nhãnancinha e bartolomeu </p><p align="center"><br />6 – danduca / joão colonado e tenenaí / pedro, paulo e thiago </p><p align="center"><br />7 - isabel </p><p align="center"><br />8 - dozinha e inácia / pedro potaço </p><p align="center"><br />9 - pantaco e buiú </p><p align="center"><br />10 - zé bugio </p><p align="center"><br />11 - antoíno boi </p><p align="center"><br />12- lunaiá e joão tungo </p><p align="center"><br />13 - tranca de rio </p><p align="center"><br />14 - celeste e rosário </p><p align="center"><br />15 - eneu </p><p align="center"><br />16 - murtinho e rosina / joão fandro / francisco rugoso / cumará e nheiú / tarcisa e fronho / tomásia / dourado, tumida os filhos, amélia , acapoúca , joão mão cega e padre demerval </p><p align="center"><br />17 - celeste </p><p align="center"><br />18 - amastor e luzia<br /></p><p align="center">19 - pedro viriano e joão mutaba </p><p align="center"> </p><p align="center"><span style="color:#ffffff;">.<br /></span></p><p align="center"></p><p align="center"></p><p align="center"></p><p align="center"></p><p align="center">violão e voz sérgio souto</p><p align="center">fotografias marina quinan e marcos quinan<br /><span style="color:#ffffff;"></span></p><p align="center"><span style="color:#ffffff;"></span></p><p align="center"><span style="color:#ffffff;">.</span></p><span style="color:#ffffff;"></span><p align="left"><br />na vida dos irmãos que sonhamos:<br />iên, zumunducu, cego bocovó, nhanubuí, vicença, marteniano, joão curto, nhãnancinha, bartolomeu, danduca, joão colonado, tenenaí, pedro, paulo, thiago, isabel, dozinha, inácia, pedro potaço, pantaco, buiú, zé bugio, antoíno boi, lunaiá, joão tungo, tranca de rio, celeste, rosário, eneu, murtinho, rosina, joão fandro, francisco rugoso, cumará, nheiú, tarcisa, fronho, tomásia, dourado, tumida e os filhos, amélia, acapoúca, joão mão cega, padre demerval, amastor, luzia, pedro viriano e joão mutaba, cada história é cantada aqui como gesto de liberdade e plantio, hora do comum e do sagrado de todos nós<br /><br />aos parceiros, amigos e mestres; sérgio souto e joãozinho gomes, companheiros dessa jornada, honrado agradeço<br /><br />as histórias das pessoas comuns cantadas aqui como uma suíte popular em gravação caseira, fazem parte do feixe de contos do livro “sertão do reino”, ambientado no período da cabanagem - pode ser encontrado na ladodedentro: <a href="http://ladodedentrobrasil.blogspot.com/">http://ladodedentrobrasil.blogspot.com/</a><br /></p><p align="left">para celso viáfora, ivan lins e todos que lutam pela liberdade sem se perder dentro dela.<br /><br /><br />mq</p><p align="left"></p><p align="left"><span style="color:#ffffff;">.</span></p><p align="left"><br /><strong>1 - colho cura</strong><br /><br />colho cura<br />na seiva<br />das bruscas histórias<br />que canto aqui<br />que canto aqui<br /><br />reboleira de sementes<br />reboleira de sementes<br /><br />luta brasileira travada<br />no sertão do reino<br />das pessoas comuns<br /><br />tenro ventre<br />onde teima<br />a liberdade<br />sempre<br />querer nascer</p><p align="left"></p><p align="left"><span style="color:#ffffff;">; </span><br /><br /><strong>2 - iên e zu munducu / cego bocovó</strong><br /><br />quando viu veloz o salto<br />no sombrio e denso mato<br />pensou um bicho imenso<br />uma onça ou um macaco<br /><br />foi pisando em silêncio<br />ao encontro do entocado<br />entre dois olhares tensos<br />revelou-se o achado<br /><br />no feitiço do momento<br />olhos negros mundiados<br />enxergaram-se por dentro<br />visionários aliados<br /><br />quatro mãos em movimento<br />dois destinos enlaçados<br />um a chuva o outro o vento<br />caminharam lado a lado<br /><br />espalharam pensamentos<br />dividiram e somaram<br />impuseram ensinamentos<br />aos dali e aos que chegaram<br /><br />era o abaribó nascendo<br />do entendimento raro<br />de dois homens parecendo<br />duas sinas que se acharam<br /><br />cego bocovó prevendo<br />com seu olho inflamado<br />o presente desfazendo<br />tudo que fez no passado<br /><br />estalos de febre ardendo<br />no mormaço abafado<br />sua cegueira batendo<br />num navio fundeado<br /><br />passou a vida vendo<br />no caminho escurejado<br />o abaribó crescendo<br />com um jesuíta ao lado<br /><br />nessa mistura o fadário<br />de valentia e mistério<br />a igualdade trazendo<br />na liberdade o temário<br /><br /></p><p align="left"><span style="color:#ffffff;">.</span><br /><strong>3 - nhanubuí</strong><br /><br />do terçado veio o corte<br />e do corte veio a vida<br />e da vida um mano forte<br />através de uma ferida<br />feita pelas mãos da morte<br />ou por coisa parecida<br />mercadora da má sorte<br />mensageira da desdita<br /><br />nhanubuí imbuído de vingança<br />nhanubuí na rudeza da sua lida<br />nhanubuí sem folguedo e infância<br />nhanubuí se criou com a ferida<br />nhanubuí inflamado na lembrança<br />nhanubuí refém da paz perdida<br />nhanubuí nas entranhas da criança<br />nhanubuí cria de mulher jazida<br /><br />do terçado veio o corte<br />e do corte foi-se a vida<br />e da vida veio a morte<br />através de outra ferida<br />feita pelo mano forte<br />que se libertou da lida<br />com os danos da má sorte<br />de ter sido morte e vida<br /></p><p align="left"><span style="color:#ffffff;">.</span><br /><br /><strong>4 - vicença e marteniano / joão curto</strong><br /><br />ir dentro do vento<br />remando sem parar<br />e assim voltar à áfrica<br />atravessando o mar<br />miragem geográfica<br />impressa no olhar<br />caviana era a áfrica<br />o amazonas o mar<br />o amazonas o mar<br /><br />marteniano ficava<br />aquém do rio a sonhar<br />cada vela que passava<br />o fazia chorar<br />e o vento esparramava<br />cada lágrima a rolar<br />na face alagada<br />pelos açudes do olhar<br />pelos açudes do olhar<br /><br />joão curto esculpiu tocheiros<br />pra modo de clarear<br />mostrando navios negreiros<br />na escuridão do mar<br />diante do clero inteiro<br />no mastro a se fincar<br />esculpiu os companheiros<br />na jangada em alto-mar<br /><br />vicença ali calada<br />cuidava de preparar<br />a alma alforriada<br />pro dia de atravessar<br />à lua se perguntava<br />sozinha a matutar<br />será que marteniano<br />com ele me levará<br /><br />traçado o novo plano<br />andaram sob o luar<br />minuto era mais que ano<br />e cada passo a voar<br />vicença e marteniano<br />dentro do vento ao mar<br />com os braços do desumano<br />remaram rumo ao chegar<br />com os braços do desumano<br />remaram rumo ao chegar<br /></p><p align="left"></p><p align="left"><span style="color:#ffffff;">.</span><br /><strong>5 - nhãnacinha e bartolomeu</strong><br /><br />declamado:<br /><em></em></p><p align="left"><em>n’ora cá vida anda nus drento<br />nas foia, nus talo<br />nas raiz, nus musgo<br />n’ora du sagadro dus cada<br />i’eu? aparano... aparano...<br />invim du baribó...<br />invim du baribó...ê</em><br /></p><p align="left"><br />colhia cura sozinha<br />nas ervas e nas tucuras<br />e serenava a resina<br />nos potes das saracuras<br /><br />a força de nhãnacinha<br />vinda talvez das alturas<br />a natural medicina<br />mão extraindo as uras<br /><br />bartolomeu a mantinha<br />à confidência segura<br />o boticário não tinha<br />a permissão da natura<br /><br />e nhãnacinha dizia<br />aonde colhia cura<br />mas um segredo escondia<br />na crença da criatura<br /><br />colhia cura colhia<br />levava de déu em déu<br />a grande sabedoria<br />que encantava o aréu<br /><br />tecedura de vida em vida<br />pelo fio que tem o sinal<br />desnascer e calar a lida<br />tossindo o suspiro final<br /></p><p align="left"><br />declamado: </p><p align="left"><br /><em>onte, tavo vivi’nha muto<br />gorinha envô baribó<br />no deradero meu</em><br /></p><p align="left"></p><p align="left"><span style="color:#ffffff;">.</span><br /><strong>6 – danduca / joão colonado e tenanaí / pedro, paulo e thiago</strong><br /><br />sentada no barranco<br />de olho no horizonte<br />ali mais adiante<br />tão perto tão defronte<br />que mais um passo a frente<br />o tocaria com a fronte<br />ali adjacente<br />sem precisar de ponte<br /><br />danduca esperava<br />por pycuryauá<br />e via no espelhado<br />e turvo rio pará<br />o abaribó sonhado<br />o prometido lar<br />ali quase alcançado<br />à luz do seu olhar<br /><br />enquanto colonado<br />cuidava de contar<br />tenanaí ao lado<br />tristonha a confirmar<br />dos corpos que os soldados<br />vieram enterrar<br />em fossos muito largos<br />mais fundos que o mar<br /><br />e os três desesperados<br />nadavam sem parar<br />pedro paulo e thiago<br />atrás da preamar<br />buscando serem salvos<br />mas sem imaginar<br />que iam ser levados<br />pra guerra em cametá<br /><br />danduca no barranco<br />ouviu o rebojar<br />pensou ser a canoa<br />de pycuryauá<br />sentiu o solavanco<br />cafute a lhe pegar<br />com desumano arranco<br />até lhe espedaçar<br /></p><p align="left"></p><p align="left"><span style="color:#ffffff;">.</span><br /><strong>7 - isabel</strong><br /><br />atrás da máscara o belo<br />a formosura da cara<br />a sagração do anelo<br />a sutileza mais cara<br />dentro da capa o braseiro<br />a belezura mais rara<br />feixe no fogareiro<br />fascinação ou tara<br /><br />penugem de cuitelo<br />trigal em pleno céu<br />cocares amarelos<br />os pêlos de isabel<br /><br />perto do sumidouro<br />na rua do rosário<br />o corpo cor de ouro<br />aberto relicário<br />doava o tesouro<br />a mais um donatário<br />no chão do logradouro<br />embaixo do estrelário<br /><br />torres de castelo<br />envoltas em véu<br />montes tão singelos<br />os seios de isabel<br /><br />qual dama apaixonada<br />macia como a pluma<br />aurora encharcada<br />de languidez e bruma<br />se dava escanchada<br />ao pé da samaúma<br />depois ia pra casa<br />qual nuvem que se esfuma<br /><br />penugem de cuitelo<br />trigal em pleno céu<br />cocares amarelos<br />os pêlos de isabel<br /><br />torres de castelo<br />envoltas em véu<br />montes tão singelos<br />os seios de isabel<br /></p><p align="left"></p><p align="left"><span style="color:#ffffff;">.</span><br /><strong>8 - dozinha e inácia / pedro potaço</strong><br /><br />remavam descendo o rio<br />com a canoa cheia de cachos<br />falavam de tudo e riam<br />quando o assunto era macho<br /><br />no repuxo da curva o arrepio<br />ouviram a explosão diacho<br />e viram sinais de fumaça<br />se levantando dos fachos<br /><br />remaram pensando desgraça<br />e viram a destruição<br />a casa grande a senzala<br />tudo em cinza no chão<br /><br />se foram dozinha e inácia<br />saíram por este mundão<br />remaram em caminhos de água<br />andaram em braços de chão<br /><br />inválidas foram achadas<br />nas malhas da imensidão<br />dozinha comendo a terra<br />inácia sem respiração<br /><br />potaço voltava da guerra<br />e ainda as tomou pelas mãos<br />dozinha comendo a terra<br />puxou-lhe a recordação<br /><br />lembrou-se da mão de farinha<br />do relho mordaz do patrão<br />o mesmo que indagorinha<br />provou na morte o perdão </p><p align="left"></p><p align="left"></p><p align="left"><span style="color:#ffffff;">.<br /></span><strong>9 - pantaco e buiú</strong><br /><br />a riqueza ao seu alcance<br />podia com os dedos tocá-la<br />tê-la pra si num só lance<br />entre o peito e a bala<br /><br />a moeda entre os dedos<br />o polegar em seu brilho<br />o anelar no amoedo<br />o indicador no gatilho<br /><br />dentro da aurora bem cedo<br />soa na casa o estampido<br />grito de susto e de medo<br />a destampar os ouvidos<br /><br />vicente lopes morrendo<br />sobre o assoalho caído<br />pantaco indo correndo<br />por onde tinha vindo<br /><br />foi receber a riqueza<br />que tinham lhe prometido<br />e deparou com a esperteza<br />de um tapuio sabido<br /><br />buiú olhou com a certeza<br />viu em pantaco escondidos<br />culpa anseio frieza<br />por trás de gestos fingidos<br /><br />e pôs as cartas na mesa<br />o ganho bem repartido<br />toda a pequena riqueza<br />pro crime ser esquecido<br /></p><p align="left"></p><p align="left"><span style="color:#ffffff;">;</span></p><p align="left"><strong>10 - zé bugio</strong><br /><br />tão logo o mensageiro<br />caiu finou no caminho<br />pediu pro remeiro<br />arfando baixinho<br />seguir viagem sozinho<br />levando aquela mensagem<br />ao seu destino<br /><br />ninguém ali sabia ler<br />nem joão camboa nem zé bugio<br />foram capazes de entender<br />como se daria o litígio<br /><br />ninguém ali sabia ler<br />nem joão camboa nem zé bugio<br />foram capazes de entender<br />como se daria o litígio<br /><br />o que a mensagem quer dizer<br />fala de faca ou de cartucho<br />qual estratégia a se manter<br />fingir debanda em transfúgio<br />a ordem é matar ou morrer<br />ou se amoitar em refúgio<br /><br />foram buscar alguém pra ler<br />nas cercanias do engenho<br />voltaram ao amanhecer<br />com um feitor ruim de gênio<br />que em voz alta pôs-se a ler<br />todos atentos e ingênuos<br />não conseguiram perceber<br />que lia mais onde era menos<br /><br />leu errado<br />o desgraçado leu errado<br />leu errado<br />sabia que ia morrer açoitado...<br /><br />leu errado<br />o desgraçado leu errado<br />leu errado<br />sabia que ia morrer açoitado...<br /><br />e assim partiram à mercê<br />da intuição do inesperado<br />pois a cidade estava lá<br />e possuía quatro lados<br />só restava avistar<br />qual seria atacado e atacar<br /></p><p align="left"><br /><span style="color:#ffffff;">.</span><br /><strong>11 - antoíno boi</strong><br /><br />ele não ficava quieto<br />e lidava com o gado<br />era bem mais que esperto<br />e por sinhô respeitado<br />era por si só liberto<br />jamais fora açoitado<br />via a vida muito perto<br />bem ali logo ao seu lado<br />um campo livre aberto<br />um chão conquistado<br /><br />benquisto desde jitinho<br />quiçá demais amado<br />antoíno e seu destino<br />dois anuns catando gado<br />homem-boi boi-passarinho<br />soltos pelo descampado<br />dois negrinhos peregrinos<br />engendrando o legado<br />pra que os próximos meninos<br />fossem seus ou dos soldados<br />fossem livres nos caminhos<br />e andassem lado a lado<br />feito o gado e antoíno<br />muito longe do cercado<br />e também do pelourinho<br />nada mais acorrentado<br />nas vistas dos passarinhos<br /><br /></p><p align="left"><span style="color:#ffffff;">.</span><br /><strong>12 - lunaiá e joão tungo</strong><br /><br />limpavam os excrementos<br />e carcaças de animais<br />escondendo no mal cheiro<br />as armas dos maiorais<br /><br />lidavam com suas dores<br />cantando pra espantar<br />colhendo entre seus pares<br />quem quisesse acreditar<br /><br />paresque i’ele<br />pissuía curuba<br />iu’oto caxingava<br />tucavum caracaxá<br />tambur punga i ganzá<br /><br />do ganho ganha a viúva<br />o sonho sonha ser livre<br />transporta como saúva<br />pólvora idéias calibre<br /><br />a carne chicota a carne<br />não importa em qual<br />se plantou a semente<br />a liberdade nasce igual<br />no sentidor no sentente<br /><br />no surrador cai a lágrima<br />com força de lenimento<br />traços da luta encobre<br />sob o capuz em tormento<br /><br />paresque i’ele<br />pissuía curuba<br />iu’oto caxingava<br />tucavum caracaxá<br />tambur punga i ganzá<br /><br /><br /></p><p align="left"><span style="color:#ffffff;">.<br /></span><strong>13 - tranca de rio</strong><br /><br />a água do manadeiro<br />borbulhou encarnada<br />a carne do aguadeiro<br />foi a chumbo rasgada<br />em todo o chão do reino<br />a guerra foi deflagrada<br />naquele dia horrendo<br />de carne dilacerada<br /><br />a sede secou as bocas<br />o fogo rachou as almas<br />as vozes ficaram roucas<br />e mãos a suar nas palmas<br />mentes ficaram ocas<br />na luta se dando às claras<br />faces ficaram loucas<br />as ruas perderam a calma<br /><br />a sede desse momento<br />qual forma de saciá-la<br />à chuva do firmamento<br />a sangue extraído à bala<br />à lágrima em movimento<br />rolando n’alguma cara<br />à foz desse rio barrento<br />lavando o rosto e a fala<br /><br />o homem ali morrendo<br />dançando dando risada<br />menino se convertendo<br />traçando a sua alçada<br />foi liberdade correndo<br />nos campos da alvorada<br />espírito de água e vento<br />à luz da manhã sonhada<br /><br />a água do manadeiro<br />borbulhou encarnada<br />a carne do aguadeiro<br />foi a chumbo rasgada<br /></p><p align="left"><br /><span style="color:#ffffff;">.</span><br /><strong>14 - celeste e rosário</strong><br /><br />pra cada tiro ardente beijo<br />pra cada afago um corpo ao chão<br />pra cada morte o mor desejo<br />pra guerra inteira uma paixão<br /><br />lá fora enquanto o sangue jorra<br />cá dentro aquece o coração<br />lá fora enquanto a guerra tora<br />cá dentro em gozo a explosão<br /><br />do amor da noite pela aurora<br />fica o orvalho suor no chão<br />no de rosário e sua senhora<br />úmidos anelos na emoção<br /><br />lá fora grita a liberdade<br />estralam balas soa o canhão<br />e a trepadeira flora no enlace<br />com o caramanchão<br /><br />na casa em que as duas moram<br />o alicerce agarra-se ao chão<br />amor abrigo que as sustentam<br />pondo-lhes asas em cada mão<br /><br />é libertando para a vida inteira<br />na colcha gris sobre o colchão<br /></p><p align="left"><br /><span style="color:#ffffff;">,<br /></span><strong>15 - eneu</strong><br /><br />alforriada enfim liberta<br />alma alada ao corpo empresta<br />suas asas amplas abertas<br />e uma casa feita de réstia<br /><br />pra que ao sol ele resida<br />e voe nu sem trapo ou véstia<br />e viva corpo em carne viva<br />e deixe a pele pra moléstia<br /><br />e assim à lepra ele resista<br />ao chão da úmida floresta<br />e adube o sonho de conquista<br />e que a conquista seja esta<br /><br />a liberdade que se avista<br />em cada olhar em cada testa<br />em cada gesto antiescravista<br />de cada ser que a chaga empesta<br /><br />que a santa casa imperialista<br />tanto o exclui quanto o nega<br />talvez por nojo ou ojeriza<br />de uma misericórdia cega<br /><br />que só tem olho pro escravista<br />que em seu leito não enxerga<br />a lepra exposta feito crista<br />no corpo que jamais se verga<br /><br />ser forjado na conquista<br />escalavrado pelas guerras<br />casca de alma lazarista<br />adubo-homem sobre a terra<br /><br />há de ser humo na floresta<br />há de mudar os falsos rumos<br />há apagar toda essa cresta<br />há de centrar os novos prumos<br /><br /></p><p align="left"><span style="color:#ffffff;">.</span><br /><strong>16 - murtinho e rosina / joão fandro e francisco rugoso / cumará e nheiú / tarcisa e fronho / tomásia / dourado, tumida os filhos, amélia , acapoúca , joão mão cega e padre demerval</strong><br /><br />o riso nasceu nas bocas<br />viraram dois maiorais<br />imitando nas horas poucas<br />o que a alegria apraz<br /><br />esbulho trouxe poder<br />vergasta a traição<br />ficou sem conhecer<br />nenhuma punição<br /><br />a febre comendo os olhos<br />com os dedos de escuridão<br />no rio de seus abrolhos<br />a morte pega o timão<br /><br />seio de corda batendo<br />no terreiro alegria<br />a guerra fera gemendo<br />seu choro calando o dia<br /><br />a morte chegou cobiçando<br />não a beleza nem o pecado<br />queria a liberdade dançando<br />naquele olhar embaçado<br /><br />escaramuças cercando vidas<br />que se encontraram em vão<br />sonhos purgando as feridas<br />e a morte oferecendo o pão<br /><br />cada qual seguiu seu certo<br />tal e qual vimos passar<br />nos cantamos o encoberto<br />descobrindo pra cantar<br /></p><p align="left"></p><p align="left"><span style="color:#ffffff;">.</span><br /><strong>17 - celeste</strong><br /><br />guerra findando lá fora<br />dor torcendo seu jeito<br />solidão não marca hora<br />e põe gemidos no leito<br /><br />a pele da morte arvora<br />saudade em seu preceito<br />a vida foi-se embora<br />do luto fez-se o confeito<br /><br />fincada a ausência devora<br />roendo a alma no peito<br />lugar em que rosário mora<br />escrava fiel desse eito<br /><br />finando sem cor a senhora<br />negou-se ao esquecimento<br />morreu de amor ido embora<br />perdida do seu pensamento<br /><br />finando sem cor a senhora<br />sombrio foi seu passamento<br />será que a morte a consola<br />calando pergunta o momento<br />será que a morte a consola<br />calando pergunta o momento<br /></p><p align="left"></p><p align="left"><span style="color:#ffffff;">.</span><br /><strong>18 - amastor e luzia</strong><br /><br />vendeira<br />mercadejando pelas ruas<br />os olhos eram duas luas<br />na forração da madrugada<br /><br />faceira<br />saia rodada em tornozelos<br />corpete de mangas tufadas<br />e o jasmim lhe dando cheiro<br /><br />dançava<br />os seus quadris eram pandeiros<br />seu corpo era uma toada<br />o mais sublime dos gambelos<br />assassinado a pancada<br /><br />pecado<br />que amastor não perdoara<br />guardou no ouvido bem guardada<br />a voz opaca do pedido<br />daquela moça judiada<br /><br />mata ele mata ele<br />mata ele mata ele<br /><br />e amastor embrutecido<br />atravessou a madrugada<br />a espera do tal desgranido<br />e o matou na alvorada<br />conforme havia prometido<br />pra luzia sua amada<br />conforme havia prometido<br />pra luzia sua amada<br /></p><p align="left"></p><p align="left"><span style="color:#ffffff;">.</span><br /><strong>19 - pedro viriano e joão mutaba</strong><br /><br />tudo por fazer<br />na terra nova encontrada aqui<br /><br />tudo por entender<br />do braço índio nascido aqui<br /><br />vida viva de vencidos e vencedores<br />vivendo livre<br />sobejando aqui<br /><br />encontro das culpas seculares<br />aprendidas de joelhos<br />e mãos postas em armas<br />com a vida viva nascida aqui<br /></p><p align="left"><br />declamação: </p><p align="left"><br /><em>contrição e a rubra mordaça<br />desnudada nas batinas<br /><br />entalhes lúbricos resultados sem lavor<br /><br />traço negro trazido à força<br />para empenho e labor<br />vida viva mutilada da altivez<br />restada nos porões pútridos do estanco<br /><br />manumissão de libertos juntos<br />calados e misturados<br />às conquistas que o deszelo<br />cobriu com hipocrisia<br />sobrepondo lenitivo à vida<br /><br />do braço índio cativado aqui<br />do braço negro exilado aqui<br />do braço branco renascendo aqui<br /><br />verdade mestiça de dores<br />esparramadas em subserviência<br />findando no descaso com a terra<br />que se fingiu descobrir<br /><br />o gentio se misturando mesmo curvado<br /><br />quimeras prenunciando salvação<br />imitando de mão em mão um deus um rei<br />mas sonhos podem ter as mãos<br />quando ganham os espertos com seus grilhões<br />mas sonhos podem ter as mãos<br />quando tocam a verdade nos sonhos<br />de outras mãos e somam a escolha da liberdade<br />de mão em mão<br /><br />óbolos de fel que põem solenemente acima<br />falsos e vazios circunspectos sujigando<br />em leis que moem e subtraem apenas<br />estugando o ódio nas entranhas<br />da morte em cal sangue e fezes<br />embriagados na loucura dos boticários<br />punindo em vão segregando o respeito<br /><br />dor, adornada de dor adonando todos<br />desencadeando vala comum e rasa do penacova<br /><br />valimento dos restos de menos valia<br />rompâncias e sujeição assomados nas ruas<br />iniquidade torturando calma e silêncios<br />no ecôo da concertina no sibilo das balas<br /><br />polução na calma da noite na soberba das alforrias<br />cordura com os atos exéquias pequenas e tristes<br />nos arrabaldes do sonho mourejados só com a vida<br /><br />cabedal que se doa com zelo sem datação<br /><br />ressôo de bombardino sibilo das ordens<br />entrando pelas gelosias das janelas abandonadas<br />pelos senhores intolerantes<br /><br />sobrecarga da ira no gentio apartado<br />vagando erradio pelos mocambos<br />deixando rastos imperceptíveis<br />nos bivaques e caminhos<br /><br />no negro amolegado pela chibata<br />homiziado nas quilombolas<br />no branco tocado pela liberdade sem laços<br />rompendo desígnio<br /><br />detração pelos adros e palácios como vômito<br />no linóleo impregnado<br />o esgar dos brasões enrijecendo a verdade<br />pelas ruas e caminhos espalhando vontade<br /><br />o gesto lesto esmiuçando os arredores<br />até o suburgo na beira do rio<br />onde folga homens embaixo dum pau copado<br />deslindando seu relato parte por parte<br />para entender melhor o dédalo das leis promulgadas<br /><br />postergando e emudecendo o ventre tenro<br />onde a liberdade queria nascer<br /><br /></em><br />só a memória espalhava<br />calor de luta no peito<br />pólvora no rosto marcava<br />a palavra armada de feito<br />e a lembrança deixava<br />sem mistério o seu jeito<br /><br />anil-trepador entalhava<br />como se mãos fossem letras<br /><br />misturaram os caminhos<br />confluindo o sonho o destino<br />montaram naquelas águas<br />defluentes do mesmo alinho<br /><br />o grito que punham nos fatos<br />devagar se escrevia em silêncio<br />orgulho na voz dos mortos<br />plantando a cura no tempo<br /><br />ê abaribó... ê abaribó...<br />sê abaribó... sê abaribó...<br />ê, ê, ê abaribó...<br /><br />ê abaribó... ê abaribó...<br />sê abaribó... sê abaribó...<br />ê, ê, ê abaribó...<br /></p><p align="left"><br /><span style="color:#ffffff;">.</span></p></span>Unknownnoreply@blogger.com1