sexta-feira, 28 de maio de 2010

COLHO CURA

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colho cura (sertão do reino)
(sérgio souto / joãozinho gomes / marcos quinan)


1 - colho cura


2 - iên e zumunducu / cego bocovó


3 - nhanubuí


4 - vicença e marteniano / joão curto


5 - nhãnancinha e bartolomeu


6 – danduca / joão colonado e tenenaí / pedro, paulo e thiago


7 - isabel


8 - dozinha e inácia / pedro potaço


9 - pantaco e buiú


10 - zé bugio


11 - antoíno boi


12- lunaiá e joão tungo


13 - tranca de rio


14 - celeste e rosário


15 - eneu


16 - murtinho e rosina / joão fandro / francisco rugoso / cumará e nheiú / tarcisa e fronho / tomásia / dourado, tumida os filhos, amélia , acapoúca , joão mão cega e padre demerval


17 - celeste


18 - amastor e luzia

19 - pedro viriano e joão mutaba

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violão e voz sérgio souto

fotografias marina quinan e marcos quinan

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na vida dos irmãos que sonhamos:
iên, zumunducu, cego bocovó, nhanubuí, vicença, marteniano, joão curto, nhãnancinha, bartolomeu, danduca, joão colonado, tenenaí, pedro, paulo, thiago, isabel, dozinha, inácia, pedro potaço, pantaco, buiú, zé bugio, antoíno boi, lunaiá, joão tungo, tranca de rio, celeste, rosário, eneu, murtinho, rosina, joão fandro, francisco rugoso, cumará, nheiú, tarcisa, fronho, tomásia, dourado, tumida e os filhos, amélia, acapoúca, joão mão cega, padre demerval, amastor, luzia, pedro viriano e joão mutaba, cada história é cantada aqui como gesto de liberdade e plantio, hora do comum e do sagrado de todos nós

aos parceiros, amigos e mestres; sérgio souto e joãozinho gomes, companheiros dessa jornada, honrado agradeço

as histórias das pessoas comuns cantadas aqui como uma suíte popular em gravação caseira, fazem parte do feixe de contos do livro “sertão do reino”, ambientado no período da cabanagem - pode ser encontrado na ladodedentro: http://ladodedentrobrasil.blogspot.com/

para celso viáfora, ivan lins e todos que lutam pela liberdade sem se perder dentro dela.


mq

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1 - colho cura

colho cura
na seiva
das bruscas histórias
que canto aqui
que canto aqui

reboleira de sementes
reboleira de sementes

luta brasileira travada
no sertão do reino
das pessoas comuns

tenro ventre
onde teima
a liberdade
sempre
querer nascer

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2 - iên e zu munducu / cego bocovó

quando viu veloz o salto
no sombrio e denso mato
pensou um bicho imenso
uma onça ou um macaco

foi pisando em silêncio
ao encontro do entocado
entre dois olhares tensos
revelou-se o achado

no feitiço do momento
olhos negros mundiados
enxergaram-se por dentro
visionários aliados

quatro mãos em movimento
dois destinos enlaçados
um a chuva o outro o vento
caminharam lado a lado

espalharam pensamentos
dividiram e somaram
impuseram ensinamentos
aos dali e aos que chegaram

era o abaribó nascendo
do entendimento raro
de dois homens parecendo
duas sinas que se acharam

cego bocovó prevendo
com seu olho inflamado
o presente desfazendo
tudo que fez no passado

estalos de febre ardendo
no mormaço abafado
sua cegueira batendo
num navio fundeado

passou a vida vendo
no caminho escurejado
o abaribó crescendo
com um jesuíta ao lado

nessa mistura o fadário
de valentia e mistério
a igualdade trazendo
na liberdade o temário

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3 - nhanubuí

do terçado veio o corte
e do corte veio a vida
e da vida um mano forte
através de uma ferida
feita pelas mãos da morte
ou por coisa parecida
mercadora da má sorte
mensageira da desdita

nhanubuí imbuído de vingança
nhanubuí na rudeza da sua lida
nhanubuí sem folguedo e infância
nhanubuí se criou com a ferida
nhanubuí inflamado na lembrança
nhanubuí refém da paz perdida
nhanubuí nas entranhas da criança
nhanubuí cria de mulher jazida

do terçado veio o corte
e do corte foi-se a vida
e da vida veio a morte
através de outra ferida
feita pelo mano forte
que se libertou da lida
com os danos da má sorte
de ter sido morte e vida

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4 - vicença e marteniano / joão curto

ir dentro do vento
remando sem parar
e assim voltar à áfrica
atravessando o mar
miragem geográfica
impressa no olhar
caviana era a áfrica
o amazonas o mar
o amazonas o mar

marteniano ficava
aquém do rio a sonhar
cada vela que passava
o fazia chorar
e o vento esparramava
cada lágrima a rolar
na face alagada
pelos açudes do olhar
pelos açudes do olhar

joão curto esculpiu tocheiros
pra modo de clarear
mostrando navios negreiros
na escuridão do mar
diante do clero inteiro
no mastro a se fincar
esculpiu os companheiros
na jangada em alto-mar

vicença ali calada
cuidava de preparar
a alma alforriada
pro dia de atravessar
à lua se perguntava
sozinha a matutar
será que marteniano
com ele me levará

traçado o novo plano
andaram sob o luar
minuto era mais que ano
e cada passo a voar
vicença e marteniano
dentro do vento ao mar
com os braços do desumano
remaram rumo ao chegar
com os braços do desumano
remaram rumo ao chegar

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5 - nhãnacinha e bartolomeu

declamado:

n’ora cá vida anda nus drento
nas foia, nus talo
nas raiz, nus musgo
n’ora du sagadro dus cada
i’eu? aparano... aparano...
invim du baribó...
invim du baribó...ê


colhia cura sozinha
nas ervas e nas tucuras
e serenava a resina
nos potes das saracuras

a força de nhãnacinha
vinda talvez das alturas
a natural medicina
mão extraindo as uras

bartolomeu a mantinha
à confidência segura
o boticário não tinha
a permissão da natura

e nhãnacinha dizia
aonde colhia cura
mas um segredo escondia
na crença da criatura

colhia cura colhia
levava de déu em déu
a grande sabedoria
que encantava o aréu

tecedura de vida em vida
pelo fio que tem o sinal
desnascer e calar a lida
tossindo o suspiro final


declamado:


onte, tavo vivi’nha muto
gorinha envô baribó
no deradero meu

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6 – danduca / joão colonado e tenanaí / pedro, paulo e thiago

sentada no barranco
de olho no horizonte
ali mais adiante
tão perto tão defronte
que mais um passo a frente
o tocaria com a fronte
ali adjacente
sem precisar de ponte

danduca esperava
por pycuryauá
e via no espelhado
e turvo rio pará
o abaribó sonhado
o prometido lar
ali quase alcançado
à luz do seu olhar

enquanto colonado
cuidava de contar
tenanaí ao lado
tristonha a confirmar
dos corpos que os soldados
vieram enterrar
em fossos muito largos
mais fundos que o mar

e os três desesperados
nadavam sem parar
pedro paulo e thiago
atrás da preamar
buscando serem salvos
mas sem imaginar
que iam ser levados
pra guerra em cametá

danduca no barranco
ouviu o rebojar
pensou ser a canoa
de pycuryauá
sentiu o solavanco
cafute a lhe pegar
com desumano arranco
até lhe espedaçar

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7 - isabel

atrás da máscara o belo
a formosura da cara
a sagração do anelo
a sutileza mais cara
dentro da capa o braseiro
a belezura mais rara
feixe no fogareiro
fascinação ou tara

penugem de cuitelo
trigal em pleno céu
cocares amarelos
os pêlos de isabel

perto do sumidouro
na rua do rosário
o corpo cor de ouro
aberto relicário
doava o tesouro
a mais um donatário
no chão do logradouro
embaixo do estrelário

torres de castelo
envoltas em véu
montes tão singelos
os seios de isabel

qual dama apaixonada
macia como a pluma
aurora encharcada
de languidez e bruma
se dava escanchada
ao pé da samaúma
depois ia pra casa
qual nuvem que se esfuma

penugem de cuitelo
trigal em pleno céu
cocares amarelos
os pêlos de isabel

torres de castelo
envoltas em véu
montes tão singelos
os seios de isabel

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8 - dozinha e inácia / pedro potaço

remavam descendo o rio
com a canoa cheia de cachos
falavam de tudo e riam
quando o assunto era macho

no repuxo da curva o arrepio
ouviram a explosão diacho
e viram sinais de fumaça
se levantando dos fachos

remaram pensando desgraça
e viram a destruição
a casa grande a senzala
tudo em cinza no chão

se foram dozinha e inácia
saíram por este mundão
remaram em caminhos de água
andaram em braços de chão

inválidas foram achadas
nas malhas da imensidão
dozinha comendo a terra
inácia sem respiração

potaço voltava da guerra
e ainda as tomou pelas mãos
dozinha comendo a terra
puxou-lhe a recordação

lembrou-se da mão de farinha
do relho mordaz do patrão
o mesmo que indagorinha
provou na morte o perdão

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9 - pantaco e buiú

a riqueza ao seu alcance
podia com os dedos tocá-la
tê-la pra si num só lance
entre o peito e a bala

a moeda entre os dedos
o polegar em seu brilho
o anelar no amoedo
o indicador no gatilho

dentro da aurora bem cedo
soa na casa o estampido
grito de susto e de medo
a destampar os ouvidos

vicente lopes morrendo
sobre o assoalho caído
pantaco indo correndo
por onde tinha vindo

foi receber a riqueza
que tinham lhe prometido
e deparou com a esperteza
de um tapuio sabido

buiú olhou com a certeza
viu em pantaco escondidos
culpa anseio frieza
por trás de gestos fingidos

e pôs as cartas na mesa
o ganho bem repartido
toda a pequena riqueza
pro crime ser esquecido

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10 - zé bugio

tão logo o mensageiro
caiu finou no caminho
pediu pro remeiro
arfando baixinho
seguir viagem sozinho
levando aquela mensagem
ao seu destino

ninguém ali sabia ler
nem joão camboa nem zé bugio
foram capazes de entender
como se daria o litígio

ninguém ali sabia ler
nem joão camboa nem zé bugio
foram capazes de entender
como se daria o litígio

o que a mensagem quer dizer
fala de faca ou de cartucho
qual estratégia a se manter
fingir debanda em transfúgio
a ordem é matar ou morrer
ou se amoitar em refúgio

foram buscar alguém pra ler
nas cercanias do engenho
voltaram ao amanhecer
com um feitor ruim de gênio
que em voz alta pôs-se a ler
todos atentos e ingênuos
não conseguiram perceber
que lia mais onde era menos

leu errado
o desgraçado leu errado
leu errado
sabia que ia morrer açoitado...

leu errado
o desgraçado leu errado
leu errado
sabia que ia morrer açoitado...

e assim partiram à mercê
da intuição do inesperado
pois a cidade estava lá
e possuía quatro lados
só restava avistar
qual seria atacado e atacar


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11 - antoíno boi

ele não ficava quieto
e lidava com o gado
era bem mais que esperto
e por sinhô respeitado
era por si só liberto
jamais fora açoitado
via a vida muito perto
bem ali logo ao seu lado
um campo livre aberto
um chão conquistado

benquisto desde jitinho
quiçá demais amado
antoíno e seu destino
dois anuns catando gado
homem-boi boi-passarinho
soltos pelo descampado
dois negrinhos peregrinos
engendrando o legado
pra que os próximos meninos
fossem seus ou dos soldados
fossem livres nos caminhos
e andassem lado a lado
feito o gado e antoíno
muito longe do cercado
e também do pelourinho
nada mais acorrentado
nas vistas dos passarinhos

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12 - lunaiá e joão tungo

limpavam os excrementos
e carcaças de animais
escondendo no mal cheiro
as armas dos maiorais

lidavam com suas dores
cantando pra espantar
colhendo entre seus pares
quem quisesse acreditar

paresque i’ele
pissuía curuba
iu’oto caxingava
tucavum caracaxá
tambur punga i ganzá

do ganho ganha a viúva
o sonho sonha ser livre
transporta como saúva
pólvora idéias calibre

a carne chicota a carne
não importa em qual
se plantou a semente
a liberdade nasce igual
no sentidor no sentente

no surrador cai a lágrima
com força de lenimento
traços da luta encobre
sob o capuz em tormento

paresque i’ele
pissuía curuba
iu’oto caxingava
tucavum caracaxá
tambur punga i ganzá


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13 - tranca de rio

a água do manadeiro
borbulhou encarnada
a carne do aguadeiro
foi a chumbo rasgada
em todo o chão do reino
a guerra foi deflagrada
naquele dia horrendo
de carne dilacerada

a sede secou as bocas
o fogo rachou as almas
as vozes ficaram roucas
e mãos a suar nas palmas
mentes ficaram ocas
na luta se dando às claras
faces ficaram loucas
as ruas perderam a calma

a sede desse momento
qual forma de saciá-la
à chuva do firmamento
a sangue extraído à bala
à lágrima em movimento
rolando n’alguma cara
à foz desse rio barrento
lavando o rosto e a fala

o homem ali morrendo
dançando dando risada
menino se convertendo
traçando a sua alçada
foi liberdade correndo
nos campos da alvorada
espírito de água e vento
à luz da manhã sonhada

a água do manadeiro
borbulhou encarnada
a carne do aguadeiro
foi a chumbo rasgada


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14 - celeste e rosário

pra cada tiro ardente beijo
pra cada afago um corpo ao chão
pra cada morte o mor desejo
pra guerra inteira uma paixão

lá fora enquanto o sangue jorra
cá dentro aquece o coração
lá fora enquanto a guerra tora
cá dentro em gozo a explosão

do amor da noite pela aurora
fica o orvalho suor no chão
no de rosário e sua senhora
úmidos anelos na emoção

lá fora grita a liberdade
estralam balas soa o canhão
e a trepadeira flora no enlace
com o caramanchão

na casa em que as duas moram
o alicerce agarra-se ao chão
amor abrigo que as sustentam
pondo-lhes asas em cada mão

é libertando para a vida inteira
na colcha gris sobre o colchão


,
15 - eneu

alforriada enfim liberta
alma alada ao corpo empresta
suas asas amplas abertas
e uma casa feita de réstia

pra que ao sol ele resida
e voe nu sem trapo ou véstia
e viva corpo em carne viva
e deixe a pele pra moléstia

e assim à lepra ele resista
ao chão da úmida floresta
e adube o sonho de conquista
e que a conquista seja esta

a liberdade que se avista
em cada olhar em cada testa
em cada gesto antiescravista
de cada ser que a chaga empesta

que a santa casa imperialista
tanto o exclui quanto o nega
talvez por nojo ou ojeriza
de uma misericórdia cega

que só tem olho pro escravista
que em seu leito não enxerga
a lepra exposta feito crista
no corpo que jamais se verga

ser forjado na conquista
escalavrado pelas guerras
casca de alma lazarista
adubo-homem sobre a terra

há de ser humo na floresta
há de mudar os falsos rumos
há apagar toda essa cresta
há de centrar os novos prumos

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16 - murtinho e rosina / joão fandro e francisco rugoso / cumará e nheiú / tarcisa e fronho / tomásia / dourado, tumida os filhos, amélia , acapoúca , joão mão cega e padre demerval

o riso nasceu nas bocas
viraram dois maiorais
imitando nas horas poucas
o que a alegria apraz

esbulho trouxe poder
vergasta a traição
ficou sem conhecer
nenhuma punição

a febre comendo os olhos
com os dedos de escuridão
no rio de seus abrolhos
a morte pega o timão

seio de corda batendo
no terreiro alegria
a guerra fera gemendo
seu choro calando o dia

a morte chegou cobiçando
não a beleza nem o pecado
queria a liberdade dançando
naquele olhar embaçado

escaramuças cercando vidas
que se encontraram em vão
sonhos purgando as feridas
e a morte oferecendo o pão

cada qual seguiu seu certo
tal e qual vimos passar
nos cantamos o encoberto
descobrindo pra cantar

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17 - celeste

guerra findando lá fora
dor torcendo seu jeito
solidão não marca hora
e põe gemidos no leito

a pele da morte arvora
saudade em seu preceito
a vida foi-se embora
do luto fez-se o confeito

fincada a ausência devora
roendo a alma no peito
lugar em que rosário mora
escrava fiel desse eito

finando sem cor a senhora
negou-se ao esquecimento
morreu de amor ido embora
perdida do seu pensamento

finando sem cor a senhora
sombrio foi seu passamento
será que a morte a consola
calando pergunta o momento
será que a morte a consola
calando pergunta o momento

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18 - amastor e luzia

vendeira
mercadejando pelas ruas
os olhos eram duas luas
na forração da madrugada

faceira
saia rodada em tornozelos
corpete de mangas tufadas
e o jasmim lhe dando cheiro

dançava
os seus quadris eram pandeiros
seu corpo era uma toada
o mais sublime dos gambelos
assassinado a pancada

pecado
que amastor não perdoara
guardou no ouvido bem guardada
a voz opaca do pedido
daquela moça judiada

mata ele mata ele
mata ele mata ele

e amastor embrutecido
atravessou a madrugada
a espera do tal desgranido
e o matou na alvorada
conforme havia prometido
pra luzia sua amada
conforme havia prometido
pra luzia sua amada

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19 - pedro viriano e joão mutaba

tudo por fazer
na terra nova encontrada aqui

tudo por entender
do braço índio nascido aqui

vida viva de vencidos e vencedores
vivendo livre
sobejando aqui

encontro das culpas seculares
aprendidas de joelhos
e mãos postas em armas
com a vida viva nascida aqui


declamação:


contrição e a rubra mordaça
desnudada nas batinas

entalhes lúbricos resultados sem lavor

traço negro trazido à força
para empenho e labor
vida viva mutilada da altivez
restada nos porões pútridos do estanco

manumissão de libertos juntos
calados e misturados
às conquistas que o deszelo
cobriu com hipocrisia
sobrepondo lenitivo à vida

do braço índio cativado aqui
do braço negro exilado aqui
do braço branco renascendo aqui

verdade mestiça de dores
esparramadas em subserviência
findando no descaso com a terra
que se fingiu descobrir

o gentio se misturando mesmo curvado

quimeras prenunciando salvação
imitando de mão em mão um deus um rei
mas sonhos podem ter as mãos
quando ganham os espertos com seus grilhões
mas sonhos podem ter as mãos
quando tocam a verdade nos sonhos
de outras mãos e somam a escolha da liberdade
de mão em mão

óbolos de fel que põem solenemente acima
falsos e vazios circunspectos sujigando
em leis que moem e subtraem apenas
estugando o ódio nas entranhas
da morte em cal sangue e fezes
embriagados na loucura dos boticários
punindo em vão segregando o respeito

dor, adornada de dor adonando todos
desencadeando vala comum e rasa do penacova

valimento dos restos de menos valia
rompâncias e sujeição assomados nas ruas
iniquidade torturando calma e silêncios
no ecôo da concertina no sibilo das balas

polução na calma da noite na soberba das alforrias
cordura com os atos exéquias pequenas e tristes
nos arrabaldes do sonho mourejados só com a vida

cabedal que se doa com zelo sem datação

ressôo de bombardino sibilo das ordens
entrando pelas gelosias das janelas abandonadas
pelos senhores intolerantes

sobrecarga da ira no gentio apartado
vagando erradio pelos mocambos
deixando rastos imperceptíveis
nos bivaques e caminhos

no negro amolegado pela chibata
homiziado nas quilombolas
no branco tocado pela liberdade sem laços
rompendo desígnio

detração pelos adros e palácios como vômito
no linóleo impregnado
o esgar dos brasões enrijecendo a verdade
pelas ruas e caminhos espalhando vontade

o gesto lesto esmiuçando os arredores
até o suburgo na beira do rio
onde folga homens embaixo dum pau copado
deslindando seu relato parte por parte
para entender melhor o dédalo das leis promulgadas

postergando e emudecendo o ventre tenro
onde a liberdade queria nascer


só a memória espalhava
calor de luta no peito
pólvora no rosto marcava
a palavra armada de feito
e a lembrança deixava
sem mistério o seu jeito

anil-trepador entalhava
como se mãos fossem letras

misturaram os caminhos
confluindo o sonho o destino
montaram naquelas águas
defluentes do mesmo alinho

o grito que punham nos fatos
devagar se escrevia em silêncio
orgulho na voz dos mortos
plantando a cura no tempo

ê abaribó... ê abaribó...
sê abaribó... sê abaribó...
ê, ê, ê abaribó...

ê abaribó... ê abaribó...
sê abaribó... sê abaribó...
ê, ê, ê abaribó...


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